O Blog Do Mendes

O Esteta

Publicado em Penas de Pato por miguelaj em February 5th, 2008

Sou feio. Aliás: sou tremendamente feio. Adjectivar de “feio” aquilo que me caracteriza é eufemismo: sou monstruoso. O homem-elefante ao pé de mim é uma rainha de beleza. O Quasimodo se me visse, olhar-me-ia com um misto de ternura e asco. As minhas bochechas parecem duas almofadas de espetar alfinetes: são inchadas, flácidas e feias. O meus nariz é uma tromba gigantesca e feia de onde brotam alguns pêlos pretos. As minhas orelhas são duas cornucópias pequenas, tortas e feias. Os meus olhos são dois pequenos berlindes brilhantes ao fundo de uma camada adiposa através da qual vejo o mundo a muito custo. Já a minha alma pode ser caracterizada por um espírito charmoso e arguto, que facilmente conquista as pessoas. Não me é difícil. Sirvo-me da inteligência desde o primeiro dia em que me apresentaram o espelho, e cultivo uma alma que em nada se coaduna com a carcaça através da qual ela se manifesta nesta existência terrena. Mas desde que esteja da parte de cá do meu monitor, obviamente. Pretendo, sozinho, e através da rede global, alterar os padrões de beleza que desde adão e eva aprisionam a humanidade neste estreito e apertado espartilho estético, que considero redutor. Até porque me diminui como pessoa humana. Que é como dizer que pretendo alertar o mundo para a evidência de que eu sou bonito e ele é abjecto a estes olhos que a custo o miram através desta repelente camada de unto. Aguardo com alguma apreensão este encontro que combinei através da internet. Caio amiudadamente nesta asneira: a de marcar encontros. E se ela é feia? É que Deus, não sem alguma ironia, quando me fez este monstro, equipou o meu neocortex com o dom da exigência: não posso com gajas feias. A beleza feminina é para mim um predicado fundamental. Basta que os olhos não sejam perfeitamente simétricos, basta um dente minimamente torto, basta um pequeno sinal, verruga ou cravo, e parto imediatamente para o insulto. Basta o mais remoto indício de celulite e a minha libido mirra. Ancas largas e parto para a agressão física. O que, em boa verdade, em nada condiz com o credo mundial que pretendo instalar. Como posso eu alterar os padrões de beleza se eu próprio pendo interiormente por respeitá-los de forma feroz e tirana? Depois penso nisso. Neste momento a minha preocupação é outra: estou sentado à mesa do café à espera do meu ciber-engate. As pessoas olham-me com asco e repulsa, como de todas as outras 18 vezes em que saí de casa. Mas não é isso que me deixa inquieto. Sendo eu um desastre da natureza, não por ser este monstro, mas mais pelo padrões de exigência desajustados que caracterizam a minha prospecção femeeira, não me responsabilizo se me entra pelo café adentro um estafermo e o meu instinto de alma lhe espeta imediatamente um biqueiro na boca.

Costureira da Sé

Publicado em Mendes ortónimo por miguelaj em February 5th, 2008

Conheci o João no liceu. Tinhamos 15 anos e a malta juntava-se em casa do Pedro para tocar as nossas versões de Pantera e Sepultura. Depois o João saiu, e veio a primeira banda que eu tive com o marlon, os yellow jello. Depois vieram os tsé tsé. Gravamos um disco na BMG do tozé brito. Foi um disco revolucionário, que de certa forma antecipou o paradigma digital que se avizinhava: o dos Cds que não vendem. A sala de ensaios do Pedro hibernou depois disso. Agora o João continua a ensaiar na sala do Pedro via fading commission, e nas horas vagas vem dar uma canja com os azeites. Sucede que ele é neto de um dos grandes baluartes do nacional cancionetismo. A Maria Clara é avó do João. Sou grande fã das músicas dela, bem como do género musical a que a associam. Geralmente, o chamado “nacional-cançonetismo” é associado à música do regime, mas eu como nasci em 1978, para mim o regime é quando se corta nos doces e nos hidratos de carbono. Gosto tanto do Zeca Afonso como do João Ferreira Rosa. De todas as musicas que eu ouvi da Maria Clara, entre “Figueira da Foz”, “Quem passa por Alcobaça”, “De lá Para Cá” e “Ó Zé Aperta o Laço”, esta foi a que mais me bateu.

“Costureira da Sé” foi um filme (o primeiro filme português onde aparecia um beijo na boca) de 1958, da qual fazia parte esta música, mas já numa outra versão. A original, gravada pela Maria Clara é, segundo o João, de meados dos anos 40.

Aqui fica a minha versão, gravada ontem numa viola cujas cordas já não são mudadas mais ou menos desde esse tempo.

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