O Blog Do Mendes

Isaura

Publicado em Penas de Pato por miguelaj em March 30th, 2010

é sal, imensa água
que teima em nos separar
o leito da minha mágoa
vai engrossando o mar

ai isaura, eu ainda nao exauri
todo o sentimento que tenho por ti

isaura foste a primeira
do meu pobre coração
segue o teu porta-bandeira
vai na tua procissão

vai isaura, que o Carnaval já passou
o meu sentimento, não

navegar é preciso
no mar dos teus caracóis
nas ondas do teu sorriso
na esteira dos teus lençois
nas ondas da tua saia
eu preciso me afogar
mas sei que vou morrer na praia
por não enfrentar o mar

quando a estação derradeira
da vida me quiser me levar
e a manhã de quarta feira
em cinzas me tranformar

a poeira que do meu corpo restar
fica para sempre na areia
o resto, engrossou o mar

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Desdita

Publicado em Penas de Pato por miguelaj em January 7th, 2010

DESDITA

Desdita

Ouvi da minha desdita

Certo dia em que eu passei

Numa ruela tão estreita

Onde fica, já nem sei

Calhou de estar à janela

Nessa dia àquela hora

A criatura tão bela

Que naquela casa mora

Delicada de cintura

E com setas no olhar

Viu-me naquela  figura

E a sorrir mandou-me entrar

Nesse dia a mesma hora

Não chegou pelo jantar

O fiador da cidade

Lá o foram procurar

Veio dar ao pé rio

Sem roupas, sem cor, desfeito

Com as vergonhas de fora

E três facadas no peito

Por nunca ter um tostão

Fui o primeiro suspeito

Fui nomeado  vilão

Naquele golpe perfeito

E logo de manhazinha

Ao juiz eu fui chamado

E qual não foi o meu espanto

Eu já lá tinha estado

Era aquela tal  ruela

Estreita como a minha sorte

Sem ter ninguém à janela

Desta vez bati à porta

Sem nada que desculpasse

Obra que eu não assinei

Fosse qual fosse o desfecho

Nada tinha contra a lei

O meu alibi ficou preso

Num nó da minha garganta

Sei que se põe à janela

Se houver sol, ainda canta

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Os Nomes dos Cafés

Publicado em Penas de Pato por miguelaj em February 20th, 2009

Os nomes dos nossos estabelecimentos hoteleiros dizem muito sobre o estado da nossa mentalidade, numa determinada época. Basta olhar para os letreiros dos nossos cafés para intuir que o factor que preside à sua cristanização é sempre um ideal de progresso, uma postura provinciana perante aquilo que é moderno e novo. O provinciano é todo aquele que ama o progresso em todos os seus aspectos externos (formais e acessórios), independentemente do que esse progresso possa representar para a vida práctica. Ora, como o progresso é uma coisa constante da vida, e representa sempre o mesmo em termos essenciais, apenas muda nos seus aspectos visíveis ao olho português. E é precisamente essa parte que parece interessar a quem baptiza os cafés de Portugal. Os letreiros dos nossos estabelecimentos são como que cataventos, que apontam o sentido dos ventos soprados pela modernidade que vem de longe. Existem 4 gerações de cafés. Existe uma 5ª geração, uma espécie de geração zero, uma pré-história do baptismo caféeiro, anterior e exterior a tudo isto. São os cafés culturalmente periféricos. São pequenos negócios de família. Chamam-se Café Barbosa, Café Pereira, Café Central, Café Juventude, Café Estação, Café Artur, e têm nomes correntes e despretensiosos, de uma autitude quase rural perante o progresso: renegando-o. Não pretendem representar nada e os seus nomes são estéticamente ocos. Têm imensa pinta, porque não pretendem ter nenhuma.
 
1ª Geração: Cafés cujo nome remete para os ideais de glamour, pompa, charme, requinte e grandeza da sua época. Numa altura em que o mundo, culturalmente, era europeu. São cafés amplos e de pé direito alto, com cheiro a café acabado de espremer, empregado de laço e suspensórios, camisa de manga curta e bolso com canetas e bloco de notas lá dentro, um vendedor de cautelas cego ao balcão, um pequeno quiosque que vende revistas e chocolates regina, mesmo à entrada. Café Roma, Café Paris, Café Princesa, Confeitaria Presidente, Café Imperial, Café Império, Café Rialto, Café Mónaco, Café Águia Real, Também não é de todo desprezível um apelo ao nosso próprio império: Café Lusitano, Café Douro e, porque não, Café Lisboa.
 
2ª Geração: Entramos na geração dos nomes que pretendem atingir o estatuto de prestígio antravés de trocadilhos inteligentes. São os Cafés com nomes compostos por várias palavras conjugadas. Cafés com grades de cerveja empilhadas, caricas no chão, calendários pirelli, veteranos do ultramar mal dispostos ao balcão,e chiclas pirata e gorila em frascos redondos de plástico. São os Café Katekero, Café Vai-e volta, Café Kátespero, Café Douripão, Café Panitejo, Café Maritó, Café Tómizé. É aqui que aparece pela primeira vez um certo apelo turístico, a louvar as virtudes de um clima que potencia o conceito de esplanada: Café A-ver-o-mar, Café Suave Brisa, Café Miratua.
 
3: Geração. Quando a mundo passa a ser culturalmente americano. Os ventos da modernidade e do ideal de categoria sopram agora desde o outro lado do mar.  Estes cafés já foram baptizados por gente mais “culta” e mais “instruída”, gente com o coração no estrangeiro. São os cafés da geração da TV, do sonho americano, dos filmes de hollywood, do homem na lua, dos livros de banda desenhada e dos índios contra caubóis. É a geração de cafés que formaram a minha própria geração. Cafés com setas, hamburgers e fatias de pizza ultracongelada, panikes, toldos lipton e cadeiras de plástico. Pela primeira vez, os nomes dos estabelecimentos deixam de ser em português e, nos casos de maior requinte, estão mal escritos. Café Hollywood, Café Maiami, Café Havay, Confeitaria Popeye, Café Tropical, Café Asterix, Café Dallas, Café Frog, Café Snoopy, Café No-name, Café Rock, Café Stop, Café Space,
 
4ª Geração. A actual. Com a América na mó-de-baixo em termos de prestígio e pinta, chegamos à tirania da estética do “cool”. Do clean. Do minimal. De milão. De Ibiza. São os cafés com “café” no fim. Lounge Café, fashion café, Cool café, Zen café, VIP café, Silk Café, River Café. Cafés com pouffs espalhados pelo chão e um plasma na parede a emitir o fashion tv 24 horas por dia. O filho do dono dá a cara, é ele o lider espiritual de todo este conceito. O dono, esse, está escondido na copa a contar o apuro e a despachar notas de encomenda. Não se mostra, pois nem sequer sabe pronunciar direito o nome do estabelecimento do qual é proprietário.
 
Nota: Os nomes avançados a título de exemplo são imaginados. Contudo, em alguns casos, coincidem com exemplos reais. Foi sem qualquer intenção. Mas seria impossível evitar essa coincidência.

O Esteta

Publicado em Penas de Pato por miguelaj em February 5th, 2008

Sou feio. Aliás: sou tremendamente feio. Adjectivar de “feio” aquilo que me caracteriza é eufemismo: sou monstruoso. O homem-elefante ao pé de mim é uma rainha de beleza. O Quasimodo se me visse, olhar-me-ia com um misto de ternura e asco. As minhas bochechas parecem duas almofadas de espetar alfinetes: são inchadas, flácidas e feias. O meus nariz é uma tromba gigantesca e feia de onde brotam alguns pêlos pretos. As minhas orelhas são duas cornucópias pequenas, tortas e feias. Os meus olhos são dois pequenos berlindes brilhantes ao fundo de uma camada adiposa através da qual vejo o mundo a muito custo. Já a minha alma pode ser caracterizada por um espírito charmoso e arguto, que facilmente conquista as pessoas. Não me é difícil. Sirvo-me da inteligência desde o primeiro dia em que me apresentaram o espelho, e cultivo uma alma que em nada se coaduna com a carcaça através da qual ela se manifesta nesta existência terrena. Mas desde que esteja da parte de cá do meu monitor, obviamente. Pretendo, sozinho, e através da rede global, alterar os padrões de beleza que desde adão e eva aprisionam a humanidade neste estreito e apertado espartilho estético, que considero redutor. Até porque me diminui como pessoa humana. Que é como dizer que pretendo alertar o mundo para a evidência de que eu sou bonito e ele é abjecto a estes olhos que a custo o miram através desta repelente camada de unto. Aguardo com alguma apreensão este encontro que combinei através da internet. Caio amiudadamente nesta asneira: a de marcar encontros. E se ela é feia? É que Deus, não sem alguma ironia, quando me fez este monstro, equipou o meu neocortex com o dom da exigência: não posso com gajas feias. A beleza feminina é para mim um predicado fundamental. Basta que os olhos não sejam perfeitamente simétricos, basta um dente minimamente torto, basta um pequeno sinal, verruga ou cravo, e parto imediatamente para o insulto. Basta o mais remoto indício de celulite e a minha libido mirra. Ancas largas e parto para a agressão física. O que, em boa verdade, em nada condiz com o credo mundial que pretendo instalar. Como posso eu alterar os padrões de beleza se eu próprio pendo interiormente por respeitá-los de forma feroz e tirana? Depois penso nisso. Neste momento a minha preocupação é outra: estou sentado à mesa do café à espera do meu ciber-engate. As pessoas olham-me com asco e repulsa, como de todas as outras 18 vezes em que saí de casa. Mas não é isso que me deixa inquieto. Sendo eu um desastre da natureza, não por ser este monstro, mas mais pelo padrões de exigência desajustados que caracterizam a minha prospecção femeeira, não me responsabilizo se me entra pelo café adentro um estafermo e o meu instinto de alma lhe espeta imediatamente um biqueiro na boca.

O Senhor Germano

Publicado em Penas de Pato por miguelaj em December 10th, 2007

O Sr. Germano sentia-se no direito de ter hobbies. Tinha dedicado toda uma vida de trabalho árduo como ajudante de guarda-livros, por isso agora devotava todo o seu tempo a satisfazer os seus caprichos de horas vagas. O dominó encabeçava o topo das suas preferências. O facto de não ter companhia (não tinha amigos) não o demovia de se entregar de corpo e alma a essa actividade da qual usufruía de forma pouco convencional.
Sentava-se sozinho, com a diligência de quem completa uma tarefa vulgar, e começava por dispôr as peças viradas para baixo, num rectângulo que ocupava todo o chão da sua cave.
Depois, com paciência, pintava por cima do lençol de dominós um tosco desenho (o Sr. Germano não era lá grande desenhador). No fim, numerava as peças, recolhia-as uma e uma e dispunha-as novamente, na vertical, de acordo com o seu esquema global. Gostava da forma como os dominós de desfiavam um a um, e sentia-se um Grande Arquitecto o ver o seu desenho ganhar forma, por fim, logo após o seu pequeno piparote divino. Era como se todo um Universo se desenhasse perante ele, Sr. Germano, o Criador, ali na sua pequena e húmida cave.
Mas sua cave sempre era mais digna do que o seu posto de trabalho na empresa do Patrão Vasques. Pelo menos não estava sujeito àquela corrente de ar que o deixou para sempre, de forma crónica, a pingar do nariz. E assim O Sr. Germano ia queimando os seus dias, manuseando as suas milhares de peças de dominó. Por isso mesmo, a metafísica da Arquitectura Divina do seu ofício nao era a única coisa invisível naquelas peças de dominó. Nessas peças gastas e sujas moravam também colónias de bactérias, autênticos mundos dentro de um Mundo. Assumiam diversas bio-formas. Em cada peça habitavam milhões de milhares de vidas, que também elas se conjugavam numa quase harmonia que caracteriza todo e qualquer eco-sistema. Cada peça era uma galáxia. Algumas dessas bactérias, esses vermes invisíveis do Dominó do Sr Germano, eram afeitas a pensar. Em cada peça, seus habitantes filosofavam sobre o grande Esquema Global das coisas, inquietados pela sua finitude e seu propósito divino.
Gerações e gerações de bactérias iam depurando, com o correr dos tempos, o saber das suas grandes questões. Sabiam que habitavam a sua peça em concreto. Batalhões de aventureiros, organizados em missões inter-peças, já estavam ao corrente da exsistência de vida noutras peças. Mas não podiam sequer sonhar de onde vinha a sua peça. Não sonhavam que sua peça vinha de uma safra de sucessivas pilhagens em que o Sr. Germano ia subtraído o Clube dos Fenianos de todo o seu parque de objectos lúdicos, em anós de matinés recriativas de Domingo. Semi-grupos de bactérias pensantes concebiam vagamente um vasto lençol de outras peças, sempre em constante mutação, e que um dia um peça se lhes tombaria em cima, e que por sua vez sua peça tombaria por sobre uma outra, e todo o esquema global em que concebiam a existência de sua espécie se desordenaria por fim, num apocalispe inevitável. Outros baseavam toda a sua existência na Fé. Acreditavam num Sr. Germano, a que davam vários nomes. Do Sr. Germano vinham (não ousavam saber como, mas também um nariz humano é coisa que não seriam capazes de conceber) e para o Sr. Germano (chamemos-lhe assim) voltariam um dia. Várias correntes de pensamente debatiam, de forma acesa e ao longo vários minutos (o que para estes minusculos seres se poderá traduzir em milénios), se a vontade desse Ente Superior seria ou não consciente. De peça em peça ia decorrendo a sua vida, normalmente. Alguns, profecticamente, vaticinavam ideias pouco substânciadas de um tosco desenho, um porvir quase-bíblico onde um dia todos se juntariam num Uno que finalmente faria sentido para todas as suas sub-espécies. Mas esses não eram levados a sério. Seus habitantes concentravam-se, isso sim, em ir mais além, sempre dentro do alcance do visível, e era já possível conhecer a vida num raio de 3 a 4 peças. Mas mesmo assim a vida fazia pouco sentido.
Entretanto, o Sr. Germano já tinha acabo de dispôr as suas estimadas peças todas na vertical. Já se podia dirigir, triunfal, à peça inicial, aquela que desencadearia o fim último dos seus últimos dias. Com o dedo médio, deu o seu piparote. E em poucos segundos viu desfiar, em cascata, as peças que constituiam o todo da sua criação, e viu ganhar forma o Galo de Barcelos meio tosco que tanto trabalho lhe tinha dado a desenhar.

Caixa de Vigo

Publicado em Penas de Pato por miguelaj em December 10th, 2007

Estou aqui parado em frente à casa velha mas não entro. Não quero entrar, nem sequer posso. “Alvará de construção, propriedade da Caixa de Vigo.” Isto agora já não é nosso. Não posso entrar, seria invasão de propriedade privada. Mas também não quero. Mudei muito desde que a minha avó morreu, agora tenho barba e estou bastante mais magro.
Tenho medo que não me reconheça, e não estou para ser corrido à vassourada pela minha própria avó como os barbudos do 25 de Abril. Os barbudos a querer saber quantas divisões tinha a casa e a minha avó de vassoura a enchotá-los como moscas. O 25 de abril, que para nós não existiu a não ser em histórias de barbudos indiscretos e vassouradas.
Agora isto vai ser um banco.
Imagino um trisavô velho, pré-senil, de pijama, gorro de dormir e mau humor, a gritar lá de cima do quarto grande que “qualquer dia entram-nos por aqui os espanhóis”. Á sua volta, vejo tias atarefadas, numa azáfama de lençois e botijas, a dizer “está bem, meu pai, está bem”, com aquela condescendência que as mulheres têm quando tratam dos velhos.
Contudo, o letreiro. (Os velhos têm sempre razão).
Agora vai estar ali um caixa a receber as pessoas, em vez da minha tia “meninos, limpem os pés”. Ali onde a Senhora Adozinda estendia a roupa, as minhas primas vão poder estender os limites dos créditos. Já as estou a ver, acompanhadas de maridos e carrinhos de bebés, a subir rampa acima (concerteza vão pôr uma, de acordo com as normas europeias) a caminho dos seus financiamentos.
Ali atrás é onde faziamos as nossas vendas. Era para juntar dinheiro para cromos do mexico 86, mas ofereciamos a mercadoria toda, o negócio ia abaixo, e depois afixavamos um letreiro que dizia “a generosidade é o primeiro passo para a falência”. Acho que os senhores espanhóis não vão correr esse risco.
Para já só está aqui este letreiro, mas daqui a nada vão ter isto num brinco. A casa é bonita e vai ser, sem dúvia, uma bela inauguração. Será que vêm televisões filmar?
Nem quero ver… O senhor espanhol de tesoura em punho para cortar a fita, depois dos apertos de mão diplomáticos, e o velho

“Vêm aí os espanhóis!”

E a tia

“Meninos, limpem os pés!”

Vai ser uma vergonha… a minha avó a descer as escadas a correr, ofegante e determinada, a ir buscar a vassoura que está, desde que me lembro, pendurada atrás da porta da dispensa.

Crítica de crítica da semana

Publicado em Penas de Pato por miguelaj em December 10th, 2007

Esta semana foi prolífera em material para análise. Mas o mais recente trabalho de J.L. é aquele que nos mereço toda a nossa atenção. Não descurando a função pedagógica da nossa coluna, que pretende elucidar o leitor para os aspectos objectivos da massa critica(da), reivindicamos desde já o nosso direito a pontuais manifestações pessoais que em certos casos possam despertar a nossa paixão, pois nós, os críticos, somos afinal (imagine-se…) pessoas muito humanas.
Pois bem. Esta semana foi a edição do último álbum dos “Kings of Convenience”. São lá uns rapazes do Norte, que cantam assim uma música muito calminha. Mas vamos ao que interessa. O material em apreço desta semana é assinado pelo jovem promissor “J.L.”, actualmente avençado do “Minho Rock” (este jovem crítico já passou por publicações como o Correio Limiano e o Barca News). Chama-se “Kings of Convenience: Neo-Folk?”
Esta sua mais recente proposta traz alguma frescura ao panorama actual, mas não nos podemos deixar enganar pelo entusiasmo. Senão vejamos:
“a inusitada proposta acústica de Erland Oye, aclamado guru da musica electrónica…”
A peça merece-nos, logo na frase inicial, alguns comentários:
– A palavra “inusitada”, por mais pertinente, revela-se desapropriada num contexto jornalístico minhoto, numa publicação vocacionada para um público “teen”. Ademais, revela uma claríssima influência da escrita de N.M.G., que o autor não consegue esconder;
“… Constitui uma claríssima lufada de ar fresco no actual marasmo musical deste início de século…”
“Marasmo”. Esta visível tentativa de abarcar o “band-wagon” do “trendy” retro-revival do jornalismo actual (e de toda a arte em geral, porque não dizê-lo), não colhe junto da nossa redacção. Jornalistas do seu tempo batiam esta mesma palavra em máquinas de escrever autênticas, material hoje considerado “vintage”, mas que era “state-of-the art” na época, conferindo a palavras como “marasmo” uma autenticidade irrepetível nos dias de hoje.
“…” Seguem-se uns considerandos perfeitamente dispensáveis, em que o musicólogo efectivamente fala de música, algo que está perfeitamente ultrapassado no jornalismo actual da especialidade. Referem-se aspectos como “harmonias vocais” e “produção minimalista”, que não nos apraz sequer comentar. Continuando.
Claro que o trabalho vem assimptóticamente iluminado por algum do brilho deste talento promissor. Momentos como “Por vezes reminiscente de Simon e Garfunkel…” – traduzem-se em agradáveis momentos de leitura, mas nem mesmo o recurso a uma comparação, essa indispensável técnica (sem a qual bandas como Toranja, Blind Zero e Oasis nunca teriam tido a sua oportunidade junto desta superior arte de comunicação que é a crítica musical), nem mesmo esse ultimo reduto, dizia eu, nos permite uma favorável crítica.
Assim, J.L., no seu mais recente trabalho “Kings of Convenience – Neo-Folk?”, editado pela promissora “Minho Rock”, acaba por ser uma desilusão. Uma estrela.

Nota do editor: eventuais críticas a esta crítica de crítica, não perdem pela demora. Nestor Lima, o nosso crítico de críticas-de-críticas-de-críticas, acorda sempre mal disposto e tem pena afiada. E aqui junto da redacção não é fácil estacionar o carro…

Magda, a Esotérica

Publicado em Penas de Pato por miguelaj em December 10th, 2007

“Querido diário: Posso tratar-te por Jorge? É que isto de dizer “querido diário” remete para um imaginário maníaco-depressivo de quem de facto relata o seu dia-a-dia numas páginas que ninguém vai ler. É o caso, bem sei, mas se te puder tratar por Jorge vou ser capaz de uma fluência bilateral que o epíteto “diário” não permite.
Estava eu a dizer, Jorge, que o grupo de espíritos vai de mal a pior. Eu bem tento incutir algum espírito de grupo no grupo de espíritos, mas a eminência do desmembramento paira expectante. A nossa esfera colectiva está-se a romper. Imagina tu, Jorge, que o Hélder nem apareceu na última reunião. Ficou ofendido por eu ter tido maus pensamentos acerca dele! Senti que ele o sentiu, e essa vibração penetrou na minha esfera pessoal. Mas pudera! Claro que eu não me pude furtar a uma ligeira energia negativa perante a sua pessoa, já que ele se enganou na convocatória para a reunião anterior. Mandou uma sms a toda a gente que dizia “Quarta-feira às 16h na 5ª dimensão”, mas na minha sms enganou-se e escreveu “6ª” em vez de “5ª”. E eu ali a sozinha sem conhecer ninguém, na sexta dimensão, no meio daquelas almas penadas todas, e eles “ai a Magda, sempre mesma atrasada. Queres ver enganou-se, e no cruzamento da 3ª com a 4ª foi em frente. Sempre a mesma cabeça de vento!”. E eu ali, na sexta dimensão, a aturar a minha tia-tetravó Gertrudes. Ainda por cima tinha a sopa ao lume.
Tentei marcar um rendez-vous de emergência, mas o Hélder não embarcou na projecção astral. Ficou em casa muito bem sentadinho, a ver o preço certo em Euros, e nós ali, cada um fechado no seu quarto às escuras, de pernas cruzadas e mãos postas, a inalar todo aquele incenso enjoativo. Mas antes tivéssemos ficado todos como o Hélder. Tu queres ver, Jorge, que a Mónica e o Crispim estiveram o tempo todo amuados um com o outro. Parece que a Mónica apanhou o Crispim a olhar para dentro da alma dela. Este Crispim! Estas crianças de Índigo não têm emenda…
Agora estou em pânico, Jorge. A Sara, a bibliotecária, quer marcar um ponto de encontro físico! Bem tento explicar que o Crispim já morreu em 1874, mas ela mesmo assim insiste.
Mas esse não é o problema. Antes fosse… Tu percebes-me, Jorge. Eu, aquele espírito sempre bonacheirão e agradável, auto-confiante e sempre com um sorriso na cara. Um espírito bastante bonito até, modéstia à parte. Mas francamente, Jorge. Eu tenho espelho em casa… Tenho medo que a visão de uma explicadora de português com 1,52m de altura, óculos de graduação alta, cabelo apanhado em cacho, olhos esgazeados e uma cópia da 34ª edição de “o B-A-Bá do Taoismo” debaixo do braço, o paradigma de um belo espírito não consubstanciado por uma embalagem equiparável, tenho receio, dizia eu, que isso possa afectar o meu posicionamento de líder no seio do grupo. As minhas inseguranças terrenas nunca me afectaram o espírito, mas a eminência de uma reunião de carácter físico anda-me a consumir por dentro. Já são 6 anos de grupo de espíritos. Eles tornaram-se a minha única família. Pela primeira vez senti que tinha voz de comando em alguma colectividade que fosse, ainda que as minhas colegas lá do sindicato dos ex-professores nem sonhem que esta explicadora franzina e submissa seja capaz de mandar seja no que for.
Se a esfera colectiva se rompe, resta-me a pinky. Mas as diabetes andam a matá-la aos poucos, e a perspectiva de uma cadela de 17 anos com uma esperança de vida normal de 8 não é das melhores.
Pois é, Jorge. Receio o pior… “

Magda Peixoto
Sacavém, 30 de Janeiro de 2005

Cindy

Publicado em Penas de Pato por miguelaj em December 10th, 2007

– “Carlos”, disse-me ele de olhos espelhados e língua aos atropelos, depois de algumas cervejas e muitos cigarros. Apreensão visível.
– “Tu sabes que eu sei que és como um irmão para mim?”
– “Nós somos mesmo irmãos, Alfredo”
– “ah, pois. Mas não é isso…É que preciso de te confiar uma coisa muito grave. Viciei-me numa Sindy, uma brasileira, que me está a levar à ruína. Não sei o que fazer. Limpa-me o graveto todo.”
Eu devia calcular, ao primeiro “Carlos”, que vinha aí coisa séria. Mas não consegui esquivar-me a tempo. – “Conta lá”, disse num suspiro, arrependido por ter mostrado indiferença à conversa do home-cinema com dolby 5.1 que o meu irmão tinha instalado por tuta e meia e que “não fica nada atrás dos de marca”.
– “Tu sabes. Sou casado há sete anos, e a minha vida entrou numa velocidade cruzeiro que não se compadece com o fulgor de um homem de 32 anos, cheio de sangue nas veias. Isso levou-me a fantasiar. Não consegui ceder às tentações. Sabes como é a Cláudia: corpo perfeito, sexo de ir à lua, paciência de madre Teresa, vinca-me as calças na perfeição e leva-me sumo de laranja fresco e “o jogo” à cama. Fecha sempre as pastas dos dentes e escorre os cabelos do ralo da banheira. Em sete anos de casamento, cada vez mais perfeita.”
– “Continua”, Disse.
– “Tudo começou no escritório, com uma colega, a Laura. Metro e meio, anca larga, saia travada e cabelo curto. Comecei a embirrar com os post-its que ela colava no monitor e da maneira como lambia os dedos antes de virar uma página. Começou com umas discussões de nada, e o frisson foi aumentando. Isso levou-me a repensar tudo, Carlos. Descobri que a minha vida é uma pasmaceira de sexo perfeito, mulher linda e sport tv sem luta. Há um mês conheci a Sindy, e foi quando tudo começou. Pernambucana, em Portugal a fazer o politécnico, dão-lhe jeito mais uns cobres por fora. Baixinha, buço platinado e viciada em novelas. Por 50 euros recebe-me em casa dela de chinelos e mau humor. Quer sempre ver a novela, tenho que esgrimir pelo futebol. Serve-me almôndegas frias e passeia-se pela casa com rolos no cabelo. Por mais algum, conta-me o dia dela, com detalhe e relatos de conversas no discurso directo. Ando-me a viciar nesta normalidade. São lacunas que a Cláudia é incapaz de preencher e tu sabes como é, o homem é um bicho insaciável.”
Mostrou-me uma Polaroid da Sindy. Era de facto um susto.
– “Estou-te a acompanhar”
– “Comecei a viciar-me nisto, Carlos. Até já ganho alguns jogos de squash lá com o pessoal do ginásio. Acho que tem a ver com “descompressão”, conceito que eu desconhecia até há bem pouco tempo. Mas depois começou a ganhar contornos doentios. Por mais 20 euros vem a Mónica, uma colega. Discutem uma com a outra. Primeiro eu fico a ver, absorto em êxtase. Depois junto-me à discussão, num delírio de insultos e ameaças de ‘nunca mais’ ”
– Intervim, sabendo que nada detém um homem em brasa, e só o tempo poderia ajudar a ultrapassar esta fase. Ainda por cima comecei a deitar o olho à empregada de mesa. “E os teus filhos? Não pensas neles?” Interpelei, enquanto fitava a empregada feia.
Continuei: – “Tens de te resignar ao teu casamento e aceitar a tua mulher com todas as falhas que ela possa ter. Tens de encontrar um modo de te reveres no teu enlace matrimonial. Afinal, foi esse o compromisso que assumiste há sete anos. Não te podes deixar levar pelo facilitismo da satisfação imediata, isso não te leva a lado nenhum. Há padres. Há psiquiatras. Há help-lines. Há a Fátima Lopes”
Vendi-lhe mais dois ou três chavões e pedi mais duas cervejas e a conta. Paguei eu. A empregada rosnou-me e atirou-me o troco. Agradeci e fui para casa a fantasiar, acometido por uma estranha vontade de mergulhar no desconhecido.