O Blog Do Mendes

O Senhor Germano

Publicado em Penas de Pato por miguelaj em December 10th, 2007

O Sr. Germano sentia-se no direito de ter hobbies. Tinha dedicado toda uma vida de trabalho árduo como ajudante de guarda-livros, por isso agora devotava todo o seu tempo a satisfazer os seus caprichos de horas vagas. O dominó encabeçava o topo das suas preferências. O facto de não ter companhia (não tinha amigos) não o demovia de se entregar de corpo e alma a essa actividade da qual usufruía de forma pouco convencional.
Sentava-se sozinho, com a diligência de quem completa uma tarefa vulgar, e começava por dispôr as peças viradas para baixo, num rectângulo que ocupava todo o chão da sua cave.
Depois, com paciência, pintava por cima do lençol de dominós um tosco desenho (o Sr. Germano não era lá grande desenhador). No fim, numerava as peças, recolhia-as uma e uma e dispunha-as novamente, na vertical, de acordo com o seu esquema global. Gostava da forma como os dominós de desfiavam um a um, e sentia-se um Grande Arquitecto o ver o seu desenho ganhar forma, por fim, logo após o seu pequeno piparote divino. Era como se todo um Universo se desenhasse perante ele, Sr. Germano, o Criador, ali na sua pequena e húmida cave.
Mas sua cave sempre era mais digna do que o seu posto de trabalho na empresa do Patrão Vasques. Pelo menos não estava sujeito àquela corrente de ar que o deixou para sempre, de forma crónica, a pingar do nariz. E assim O Sr. Germano ia queimando os seus dias, manuseando as suas milhares de peças de dominó. Por isso mesmo, a metafísica da Arquitectura Divina do seu ofício nao era a única coisa invisível naquelas peças de dominó. Nessas peças gastas e sujas moravam também colónias de bactérias, autênticos mundos dentro de um Mundo. Assumiam diversas bio-formas. Em cada peça habitavam milhões de milhares de vidas, que também elas se conjugavam numa quase harmonia que caracteriza todo e qualquer eco-sistema. Cada peça era uma galáxia. Algumas dessas bactérias, esses vermes invisíveis do Dominó do Sr Germano, eram afeitas a pensar. Em cada peça, seus habitantes filosofavam sobre o grande Esquema Global das coisas, inquietados pela sua finitude e seu propósito divino.
Gerações e gerações de bactérias iam depurando, com o correr dos tempos, o saber das suas grandes questões. Sabiam que habitavam a sua peça em concreto. Batalhões de aventureiros, organizados em missões inter-peças, já estavam ao corrente da exsistência de vida noutras peças. Mas não podiam sequer sonhar de onde vinha a sua peça. Não sonhavam que sua peça vinha de uma safra de sucessivas pilhagens em que o Sr. Germano ia subtraído o Clube dos Fenianos de todo o seu parque de objectos lúdicos, em anós de matinés recriativas de Domingo. Semi-grupos de bactérias pensantes concebiam vagamente um vasto lençol de outras peças, sempre em constante mutação, e que um dia um peça se lhes tombaria em cima, e que por sua vez sua peça tombaria por sobre uma outra, e todo o esquema global em que concebiam a existência de sua espécie se desordenaria por fim, num apocalispe inevitável. Outros baseavam toda a sua existência na Fé. Acreditavam num Sr. Germano, a que davam vários nomes. Do Sr. Germano vinham (não ousavam saber como, mas também um nariz humano é coisa que não seriam capazes de conceber) e para o Sr. Germano (chamemos-lhe assim) voltariam um dia. Várias correntes de pensamente debatiam, de forma acesa e ao longo vários minutos (o que para estes minusculos seres se poderá traduzir em milénios), se a vontade desse Ente Superior seria ou não consciente. De peça em peça ia decorrendo a sua vida, normalmente. Alguns, profecticamente, vaticinavam ideias pouco substânciadas de um tosco desenho, um porvir quase-bíblico onde um dia todos se juntariam num Uno que finalmente faria sentido para todas as suas sub-espécies. Mas esses não eram levados a sério. Seus habitantes concentravam-se, isso sim, em ir mais além, sempre dentro do alcance do visível, e era já possível conhecer a vida num raio de 3 a 4 peças. Mas mesmo assim a vida fazia pouco sentido.
Entretanto, o Sr. Germano já tinha acabo de dispôr as suas estimadas peças todas na vertical. Já se podia dirigir, triunfal, à peça inicial, aquela que desencadearia o fim último dos seus últimos dias. Com o dedo médio, deu o seu piparote. E em poucos segundos viu desfiar, em cascata, as peças que constituiam o todo da sua criação, e viu ganhar forma o Galo de Barcelos meio tosco que tanto trabalho lhe tinha dado a desenhar.

2 Responses to 'O Senhor Germano'

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  1. Ayeye Bradzorff said, on December 11th, 2007 at 6:14 pm

    toda a vida causal importada de universos paralelos, ou vinda em “pilhagens em que o Sr. Germano ia subtraído o Clube dos Fenianos”.

    Que imagem

  2. Anonymous said, on December 12th, 2007 at 5:09 pm

    Nem avisavas da criação deste blog? Incrivel..

    Diogo bf

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