Magda, a Esotérica
“Querido diário: Posso tratar-te por Jorge? É que isto de dizer “querido diário” remete para um imaginário maníaco-depressivo de quem de facto relata o seu dia-a-dia numas páginas que ninguém vai ler. É o caso, bem sei, mas se te puder tratar por Jorge vou ser capaz de uma fluência bilateral que o epíteto “diário” não permite.
Estava eu a dizer, Jorge, que o grupo de espíritos vai de mal a pior. Eu bem tento incutir algum espírito de grupo no grupo de espíritos, mas a eminência do desmembramento paira expectante. A nossa esfera colectiva está-se a romper. Imagina tu, Jorge, que o Hélder nem apareceu na última reunião. Ficou ofendido por eu ter tido maus pensamentos acerca dele! Senti que ele o sentiu, e essa vibração penetrou na minha esfera pessoal. Mas pudera! Claro que eu não me pude furtar a uma ligeira energia negativa perante a sua pessoa, já que ele se enganou na convocatória para a reunião anterior. Mandou uma sms a toda a gente que dizia “Quarta-feira às 16h na 5ª dimensão”, mas na minha sms enganou-se e escreveu “6ª” em vez de “5ª”. E eu ali a sozinha sem conhecer ninguém, na sexta dimensão, no meio daquelas almas penadas todas, e eles “ai a Magda, sempre mesma atrasada. Queres ver enganou-se, e no cruzamento da 3ª com a 4ª foi em frente. Sempre a mesma cabeça de vento!”. E eu ali, na sexta dimensão, a aturar a minha tia-tetravó Gertrudes. Ainda por cima tinha a sopa ao lume.
Tentei marcar um rendez-vous de emergência, mas o Hélder não embarcou na projecção astral. Ficou em casa muito bem sentadinho, a ver o preço certo em Euros, e nós ali, cada um fechado no seu quarto às escuras, de pernas cruzadas e mãos postas, a inalar todo aquele incenso enjoativo. Mas antes tivéssemos ficado todos como o Hélder. Tu queres ver, Jorge, que a Mónica e o Crispim estiveram o tempo todo amuados um com o outro. Parece que a Mónica apanhou o Crispim a olhar para dentro da alma dela. Este Crispim! Estas crianças de Índigo não têm emenda…
Agora estou em pânico, Jorge. A Sara, a bibliotecária, quer marcar um ponto de encontro físico! Bem tento explicar que o Crispim já morreu em 1874, mas ela mesmo assim insiste.
Mas esse não é o problema. Antes fosse… Tu percebes-me, Jorge. Eu, aquele espírito sempre bonacheirão e agradável, auto-confiante e sempre com um sorriso na cara. Um espírito bastante bonito até, modéstia à parte. Mas francamente, Jorge. Eu tenho espelho em casa… Tenho medo que a visão de uma explicadora de português com 1,52m de altura, óculos de graduação alta, cabelo apanhado em cacho, olhos esgazeados e uma cópia da 34ª edição de “o B-A-Bá do Taoismo” debaixo do braço, o paradigma de um belo espírito não consubstanciado por uma embalagem equiparável, tenho receio, dizia eu, que isso possa afectar o meu posicionamento de líder no seio do grupo. As minhas inseguranças terrenas nunca me afectaram o espírito, mas a eminência de uma reunião de carácter físico anda-me a consumir por dentro. Já são 6 anos de grupo de espíritos. Eles tornaram-se a minha única família. Pela primeira vez senti que tinha voz de comando em alguma colectividade que fosse, ainda que as minhas colegas lá do sindicato dos ex-professores nem sonhem que esta explicadora franzina e submissa seja capaz de mandar seja no que for.
Se a esfera colectiva se rompe, resta-me a pinky. Mas as diabetes andam a matá-la aos poucos, e a perspectiva de uma cadela de 17 anos com uma esperança de vida normal de 8 não é das melhores.
Pois é, Jorge. Receio o pior… “
Magda Peixoto
Sacavém, 30 de Janeiro de 2005
deviam fazer uma BD / filme disto 🙂