Caixa de Vigo
Estou aqui parado em frente à casa velha mas não entro. Não quero entrar, nem sequer posso. “Alvará de construção, propriedade da Caixa de Vigo.” Isto agora já não é nosso. Não posso entrar, seria invasão de propriedade privada. Mas também não quero. Mudei muito desde que a minha avó morreu, agora tenho barba e estou bastante mais magro.
Tenho medo que não me reconheça, e não estou para ser corrido à vassourada pela minha própria avó como os barbudos do 25 de Abril. Os barbudos a querer saber quantas divisões tinha a casa e a minha avó de vassoura a enchotá-los como moscas. O 25 de abril, que para nós não existiu a não ser em histórias de barbudos indiscretos e vassouradas.
Agora isto vai ser um banco.
Imagino um trisavô velho, pré-senil, de pijama, gorro de dormir e mau humor, a gritar lá de cima do quarto grande que “qualquer dia entram-nos por aqui os espanhóis”. Á sua volta, vejo tias atarefadas, numa azáfama de lençois e botijas, a dizer “está bem, meu pai, está bem”, com aquela condescendência que as mulheres têm quando tratam dos velhos.
Contudo, o letreiro. (Os velhos têm sempre razão).
Agora vai estar ali um caixa a receber as pessoas, em vez da minha tia “meninos, limpem os pés”. Ali onde a Senhora Adozinda estendia a roupa, as minhas primas vão poder estender os limites dos créditos. Já as estou a ver, acompanhadas de maridos e carrinhos de bebés, a subir rampa acima (concerteza vão pôr uma, de acordo com as normas europeias) a caminho dos seus financiamentos.
Ali atrás é onde faziamos as nossas vendas. Era para juntar dinheiro para cromos do mexico 86, mas ofereciamos a mercadoria toda, o negócio ia abaixo, e depois afixavamos um letreiro que dizia “a generosidade é o primeiro passo para a falência”. Acho que os senhores espanhóis não vão correr esse risco.
Para já só está aqui este letreiro, mas daqui a nada vão ter isto num brinco. A casa é bonita e vai ser, sem dúvia, uma bela inauguração. Será que vêm televisões filmar?
Nem quero ver… O senhor espanhol de tesoura em punho para cortar a fita, depois dos apertos de mão diplomáticos, e o velho
“Vêm aí os espanhóis!”
E a tia
“Meninos, limpem os pés!”
Vai ser uma vergonha… a minha avó a descer as escadas a correr, ofegante e determinada, a ir buscar a vassoura que está, desde que me lembro, pendurada atrás da porta da dispensa.
Magda, a Esotérica
“Querido diário: Posso tratar-te por Jorge? É que isto de dizer “querido diário” remete para um imaginário maníaco-depressivo de quem de facto relata o seu dia-a-dia numas páginas que ninguém vai ler. É o caso, bem sei, mas se te puder tratar por Jorge vou ser capaz de uma fluência bilateral que o epíteto “diário” não permite.
Estava eu a dizer, Jorge, que o grupo de espíritos vai de mal a pior. Eu bem tento incutir algum espírito de grupo no grupo de espíritos, mas a eminência do desmembramento paira expectante. A nossa esfera colectiva está-se a romper. Imagina tu, Jorge, que o Hélder nem apareceu na última reunião. Ficou ofendido por eu ter tido maus pensamentos acerca dele! Senti que ele o sentiu, e essa vibração penetrou na minha esfera pessoal. Mas pudera! Claro que eu não me pude furtar a uma ligeira energia negativa perante a sua pessoa, já que ele se enganou na convocatória para a reunião anterior. Mandou uma sms a toda a gente que dizia “Quarta-feira às 16h na 5ª dimensão”, mas na minha sms enganou-se e escreveu “6ª” em vez de “5ª”. E eu ali a sozinha sem conhecer ninguém, na sexta dimensão, no meio daquelas almas penadas todas, e eles “ai a Magda, sempre mesma atrasada. Queres ver enganou-se, e no cruzamento da 3ª com a 4ª foi em frente. Sempre a mesma cabeça de vento!”. E eu ali, na sexta dimensão, a aturar a minha tia-tetravó Gertrudes. Ainda por cima tinha a sopa ao lume.
Tentei marcar um rendez-vous de emergência, mas o Hélder não embarcou na projecção astral. Ficou em casa muito bem sentadinho, a ver o preço certo em Euros, e nós ali, cada um fechado no seu quarto às escuras, de pernas cruzadas e mãos postas, a inalar todo aquele incenso enjoativo. Mas antes tivéssemos ficado todos como o Hélder. Tu queres ver, Jorge, que a Mónica e o Crispim estiveram o tempo todo amuados um com o outro. Parece que a Mónica apanhou o Crispim a olhar para dentro da alma dela. Este Crispim! Estas crianças de Índigo não têm emenda…
Agora estou em pânico, Jorge. A Sara, a bibliotecária, quer marcar um ponto de encontro físico! Bem tento explicar que o Crispim já morreu em 1874, mas ela mesmo assim insiste.
Mas esse não é o problema. Antes fosse… Tu percebes-me, Jorge. Eu, aquele espírito sempre bonacheirão e agradável, auto-confiante e sempre com um sorriso na cara. Um espírito bastante bonito até, modéstia à parte. Mas francamente, Jorge. Eu tenho espelho em casa… Tenho medo que a visão de uma explicadora de português com 1,52m de altura, óculos de graduação alta, cabelo apanhado em cacho, olhos esgazeados e uma cópia da 34ª edição de “o B-A-Bá do Taoismo” debaixo do braço, o paradigma de um belo espírito não consubstanciado por uma embalagem equiparável, tenho receio, dizia eu, que isso possa afectar o meu posicionamento de líder no seio do grupo. As minhas inseguranças terrenas nunca me afectaram o espírito, mas a eminência de uma reunião de carácter físico anda-me a consumir por dentro. Já são 6 anos de grupo de espíritos. Eles tornaram-se a minha única família. Pela primeira vez senti que tinha voz de comando em alguma colectividade que fosse, ainda que as minhas colegas lá do sindicato dos ex-professores nem sonhem que esta explicadora franzina e submissa seja capaz de mandar seja no que for.
Se a esfera colectiva se rompe, resta-me a pinky. Mas as diabetes andam a matá-la aos poucos, e a perspectiva de uma cadela de 17 anos com uma esperança de vida normal de 8 não é das melhores.
Pois é, Jorge. Receio o pior… “
Magda Peixoto
Sacavém, 30 de Janeiro de 2005
Crítica de crítica da semana
Esta semana foi prolífera em material para análise. Mas o mais recente trabalho de J.L. é aquele que nos mereço toda a nossa atenção. Não descurando a função pedagógica da nossa coluna, que pretende elucidar o leitor para os aspectos objectivos da massa critica(da), reivindicamos desde já o nosso direito a pontuais manifestações pessoais que em certos casos possam despertar a nossa paixão, pois nós, os críticos, somos afinal (imagine-se…) pessoas muito humanas.
Pois bem. Esta semana foi a edição do último álbum dos “Kings of Convenience”. São lá uns rapazes do Norte, que cantam assim uma música muito calminha. Mas vamos ao que interessa. O material em apreço desta semana é assinado pelo jovem promissor “J.L.”, actualmente avençado do “Minho Rock” (este jovem crítico já passou por publicações como o Correio Limiano e o Barca News). Chama-se “Kings of Convenience: Neo-Folk?”
Esta sua mais recente proposta traz alguma frescura ao panorama actual, mas não nos podemos deixar enganar pelo entusiasmo. Senão vejamos:
“a inusitada proposta acústica de Erland Oye, aclamado guru da musica electrónica…”
A peça merece-nos, logo na frase inicial, alguns comentários:
– A palavra “inusitada”, por mais pertinente, revela-se desapropriada num contexto jornalístico minhoto, numa publicação vocacionada para um público “teen”. Ademais, revela uma claríssima influência da escrita de N.M.G., que o autor não consegue esconder;
“… Constitui uma claríssima lufada de ar fresco no actual marasmo musical deste início de século…”
“Marasmo”. Esta visível tentativa de abarcar o “band-wagon” do “trendy” retro-revival do jornalismo actual (e de toda a arte em geral, porque não dizê-lo), não colhe junto da nossa redacção. Jornalistas do seu tempo batiam esta mesma palavra em máquinas de escrever autênticas, material hoje considerado “vintage”, mas que era “state-of-the art” na época, conferindo a palavras como “marasmo” uma autenticidade irrepetível nos dias de hoje.
“…” Seguem-se uns considerandos perfeitamente dispensáveis, em que o musicólogo efectivamente fala de música, algo que está perfeitamente ultrapassado no jornalismo actual da especialidade. Referem-se aspectos como “harmonias vocais” e “produção minimalista”, que não nos apraz sequer comentar. Continuando.
Claro que o trabalho vem assimptóticamente iluminado por algum do brilho deste talento promissor. Momentos como “Por vezes reminiscente de Simon e Garfunkel…” – traduzem-se em agradáveis momentos de leitura, mas nem mesmo o recurso a uma comparação, essa indispensável técnica (sem a qual bandas como Toranja, Blind Zero e Oasis nunca teriam tido a sua oportunidade junto desta superior arte de comunicação que é a crítica musical), nem mesmo esse ultimo reduto, dizia eu, nos permite uma favorável crítica.
Assim, J.L., no seu mais recente trabalho “Kings of Convenience – Neo-Folk?”, editado pela promissora “Minho Rock”, acaba por ser uma desilusão. Uma estrela.
Nota do editor: eventuais críticas a esta crítica de crítica, não perdem pela demora. Nestor Lima, o nosso crítico de críticas-de-críticas-de-críticas, acorda sempre mal disposto e tem pena afiada. E aqui junto da redacção não é fácil estacionar o carro…
Cindy
– “Carlos”, disse-me ele de olhos espelhados e língua aos atropelos, depois de algumas cervejas e muitos cigarros. Apreensão visível.
– “Tu sabes que eu sei que és como um irmão para mim?”
– “Nós somos mesmo irmãos, Alfredo”
– “ah, pois. Mas não é isso…É que preciso de te confiar uma coisa muito grave. Viciei-me numa Sindy, uma brasileira, que me está a levar à ruína. Não sei o que fazer. Limpa-me o graveto todo.”
Eu devia calcular, ao primeiro “Carlos”, que vinha aí coisa séria. Mas não consegui esquivar-me a tempo. – “Conta lá”, disse num suspiro, arrependido por ter mostrado indiferença à conversa do home-cinema com dolby 5.1 que o meu irmão tinha instalado por tuta e meia e que “não fica nada atrás dos de marca”.
– “Tu sabes. Sou casado há sete anos, e a minha vida entrou numa velocidade cruzeiro que não se compadece com o fulgor de um homem de 32 anos, cheio de sangue nas veias. Isso levou-me a fantasiar. Não consegui ceder às tentações. Sabes como é a Cláudia: corpo perfeito, sexo de ir à lua, paciência de madre Teresa, vinca-me as calças na perfeição e leva-me sumo de laranja fresco e “o jogo” à cama. Fecha sempre as pastas dos dentes e escorre os cabelos do ralo da banheira. Em sete anos de casamento, cada vez mais perfeita.”
– “Continua”, Disse.
– “Tudo começou no escritório, com uma colega, a Laura. Metro e meio, anca larga, saia travada e cabelo curto. Comecei a embirrar com os post-its que ela colava no monitor e da maneira como lambia os dedos antes de virar uma página. Começou com umas discussões de nada, e o frisson foi aumentando. Isso levou-me a repensar tudo, Carlos. Descobri que a minha vida é uma pasmaceira de sexo perfeito, mulher linda e sport tv sem luta. Há um mês conheci a Sindy, e foi quando tudo começou. Pernambucana, em Portugal a fazer o politécnico, dão-lhe jeito mais uns cobres por fora. Baixinha, buço platinado e viciada em novelas. Por 50 euros recebe-me em casa dela de chinelos e mau humor. Quer sempre ver a novela, tenho que esgrimir pelo futebol. Serve-me almôndegas frias e passeia-se pela casa com rolos no cabelo. Por mais algum, conta-me o dia dela, com detalhe e relatos de conversas no discurso directo. Ando-me a viciar nesta normalidade. São lacunas que a Cláudia é incapaz de preencher e tu sabes como é, o homem é um bicho insaciável.”
Mostrou-me uma Polaroid da Sindy. Era de facto um susto.
– “Estou-te a acompanhar”
– “Comecei a viciar-me nisto, Carlos. Até já ganho alguns jogos de squash lá com o pessoal do ginásio. Acho que tem a ver com “descompressão”, conceito que eu desconhecia até há bem pouco tempo. Mas depois começou a ganhar contornos doentios. Por mais 20 euros vem a Mónica, uma colega. Discutem uma com a outra. Primeiro eu fico a ver, absorto em êxtase. Depois junto-me à discussão, num delírio de insultos e ameaças de ‘nunca mais’ ”
– Intervim, sabendo que nada detém um homem em brasa, e só o tempo poderia ajudar a ultrapassar esta fase. Ainda por cima comecei a deitar o olho à empregada de mesa. “E os teus filhos? Não pensas neles?” Interpelei, enquanto fitava a empregada feia.
Continuei: – “Tens de te resignar ao teu casamento e aceitar a tua mulher com todas as falhas que ela possa ter. Tens de encontrar um modo de te reveres no teu enlace matrimonial. Afinal, foi esse o compromisso que assumiste há sete anos. Não te podes deixar levar pelo facilitismo da satisfação imediata, isso não te leva a lado nenhum. Há padres. Há psiquiatras. Há help-lines. Há a Fátima Lopes”
Vendi-lhe mais dois ou três chavões e pedi mais duas cervejas e a conta. Paguei eu. A empregada rosnou-me e atirou-me o troco. Agradeci e fui para casa a fantasiar, acometido por uma estranha vontade de mergulhar no desconhecido.
O Blogue do Mendes
Enceto aqui o meu blogue. Este vai ser o depositário das minhas excrecências musicais. Musicas não-aproveitadas pela minha quase-famosa banda de Pop-Rock, ecografias de músicas já editadas e outras incontinências sonoras que se me cruzam no caminho. Sempre em baixa-fidelidade, à qual me manterei altamente fiel.
Volta e meia volta porei aqui algumas redacções, onde abordarei temas que podem ir desde “O Meu Magusto” até “As Minhas Férias Grandes”, na secção “Penas de Pato”.
Sou de vocês,
Mendes.
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